quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A corrida

Desde 1967 que é realizada uma das corridas off road mais dificieis e espectaculares do mundo, o nome da corrida é a Baja 1000

A Baja 1000,apesar de algumas variações ao longo dos anos,basicamente pretende apurar o mais rápido a cumprir a distancia entre Ensenada e La Paz,aproximadamente 1000 milhas.
A corrida é dificil e espectacular porque é feita fora de estrada,num ambiente de deserto mexicano e debaixo de um sol potente.

Quando me propus na minha ingenuidade a fazer San Francisco-Cabo San Lucas em uma semana, nunca imaginei que na realidade o que eu estava a fazer era inscrever-me na minha Baja 5000kms.
Já me propus a coisas muito estúpidas e algumas até perigosas,mas nunca pensei em fazer uma coisa que fosse tão parva,perigosa,solitária,interessante,espiritual e sortuda ao mesmo tempo.


Comecei ,como sabem, por ir até San Diego e depois Ensenada,até aqui tudo bem,território confortavel, a papinha toda feita, Ensenada acabou por ser divertido,conheci malta fixe no Hostel Ensenada Backpackers e a noite de Ensenada é engraçada,apesar da cidade em si ser esquecivel

Estava bastante tranquilo no sentido em que apenas sabia qual era o meu objectivo,queria eventualmente chegar á pontinha da peninsula e voltar.
Sonhava com ir parando pelo caminho,descobrir uma onda solitária,montar a tenda na praia e desfrutar do clima e boa onda mexicana com margaritas e burritos.

Os primeiros 200kms depois de Ensenada serviram para me acordar para uma realidade,apesar da costa ter sem dúvida um potencial gigante de ondas solitárias,eu nunca lá poderia chegar, o meu transporte apesar de fiável e porreiro, não era um jipe e para chegar à costa precisava de um jipe e dos grandes.
Ficava assim reduzido ao alcatrão e a onde me levasse

Sendo assim comecei a andar a serio. Sul, a solução só poderia estar no sul,o meu el dorado esperava em Cabo San Lucas,pararia calmamente quando viesse a subir depois de ja saber quanto tempo demorei a descer,com menos surpresas a calma é mais possivel.

Depois de San Quintin,não consegui evitar e atropelei um cachorro,um momento bem triste na minha viagem, junto com a dona que chorava copiosamente assisti aos ultimos suspiros do cachorro. A senhora com bastante calma perguntou-me se estava bem e se o carro estava bem,depois disse-me que são coisas que acontecem e desejou-me uma viagem feliz
São coisas que aconteçem mas a mim nunca tinha acontecido,perturbou-me bastante e mesmo sem culpa sentimos sempre alguma

O carro estava bem apenas um pouco amolgado,como tal segui viagem

Por volta das 4:20 pm decidi parar em Guerrero Negro,Guerrero Negro é um melhores sitios no mundo para avistar baleias e aves,é um santuário natural.

Estava todo partido depois de ter viajado 620kms desde Ensenada,parando apenas para comer no meio do deserto,num posto de combustivel abandonado.



Nota para todos: Um canivete tipo suiço,muitas vezes é apenas tipo suiço, a mim nunca mais me apanham com um que não seja mesmo suiço ou pelo menos que funcione a serio.
Ficar esfomeado por causa do canivete ser uma merda não é a minha ideia de diversão.

Nota para todos 2: Quando num mapa parecer que se vai passar os proximos 300 kms num deserto e se passa por uma placa a dizer que a proxima gasolina é daqui a 250 kms, é porque provavelmente vai-se mesmo estar 300kms no deserto.
Meter gasolina sempre que possivel,a paranoia de ficar sem ela no meio do nada não é a minha ideia de diversão.

Finalmente em Guerrero Negro fiz uma coisa que deveria ter feito ainda antes de sair de São Francisco, comecei a fazer contas e a planear.
Se tinha feito 620kms num dia,mesmo tendo em conta que não fui o mais rápido que podia ir,sai tarde e parei cedo, levou-me a concluir que se queria fazer o trajecto todo antes de quinta feira (último dia do seguro mexicano) tinha que conduzir pelo menos 700 kms por dia

Valia a pena? queria mesmo ir até lá abaixo e voltar?
Pensei em desistir mas se desistisse nunca saberia, o meu sonho de descer a California nunca estaria a 100% completo e apesar de eu poder sempre dizer o que quissese e nunca ninguem saberia a verdade,eu tambem nunca saberia a verdade
Tinha que ir,nem que fosse para provar a mim mesmo que para cumprir sonhos o sofrimento faz parte do jogo
Além de que quem se não eu para cumprir objectivos tão parvos



Então a corrida começou

As regras eram, acordar ás 6am e no máximo conduzir até ás 6pm,não queria conduzir de noite

Não podia passar dos 140 kms\hora, não que ás vezes não quisesse ou o carro não os desse, mas tendo em conta que o limite oficial na Baja Highway 1 é de 80kms\hora, a estrada tem uma faixa para cada lado, não há bermas, há animais na estrada, camiões e ciclistas, 140 já era uma velocidade considerável.Havia outros dois factores associados à velocidade, o meu medo do desgaste mecanico e o cansaço fisico e psicológico de estar sempre concentrado

Teria que controlar os reabastecimentos com cautela,não é incomum estar centenas de kms sem ver uma bomba de gasolina
Teria que ter sempre ao meu lado água e comida façil de comer ao volante,queria parar o menos possivel

Teria que gerir 4 cds de música,os únicos que tinha, e eram de música normal,não mp3,o que durou meio dia,a partir dai phones nos ouvidos e 2 gigas da pen.

Iria seguir o plano de dormidas,sendo que optei por não acampar visto que desconhecia o terreno e já que iria passar os dias praticamente todos ao volante que o meu pequeno luxo seria dormir bem

E acima de tudo manter o sentido de missão, ter a boa disposição em alta e não deixar que a solidão e o cansaço fisico me fizessem desistir, estava nesta corrida para ganhar
As baleias em Guerrero Negro nem vê-las,não era a sua época,como tal segui viagem cumprindo as regras,logo ás 6 e 30 da manhã e a fundo.
Objectivo Cabo

Foi um dia duro,penso que o mais duro de todos

Um calor abrasador,distancias estúpidas que confundem a nossa dimensão portuguesa
é incrivel como se pode estar numa estrada e passar mais de uma hora sem ver um carro,pessoa ou animal,pela primeira vez na minha vida posso dizer que me senti mesmo sozinho,sem telemoveis,companhia,internetes nem nada,apenas eu,os meus 4 cds, o ponteiro da temperatura da água e o do nivel da gasolina, a correr em frente num faroeste de perder de vista.

Depois de mais um interessante momento a tentar poupar gasolina para não ficar apeado vejo pela primeira vez o Mar de Cortés,ver o mar depois do deserto é uma sensação linda,para mim foi sentir um conforto imediato,olhar para o mapa e ver q ainda falta bastante para o meu objectivo é menos mau quando se têm uma massa azul a brilhar ao lado.
Chegar até La Paz foi extenuante e as dores de pescoço já eram muitas,parecia que não conseguia posição confortável,o cansaço era crescente mas estando o Cabo a 200kms fiquei outra vez motivado e lá segui

Não sei o que esperava encontrar em Cabo São Lucas,sabia que é um dos destinos preferidos do springbreak dos americanos,sabia que tinha resorts de luxo e praias paradisiacas,água quente e boas ondas ou seja um perfeito sonho

À saida de La Paz nota-se que o ambiente já é bem diferente,o deserto dá lugar a uma vegetação tipo selva e o ar é bem mais humido, o caminho leva-nos de volta á costa do pacifico e é bem bonito,passei pela aldeia de Todos os Santos e curti a atmosfera,para quem conhece fez-me lembrar Pipa,no Brasil,dai até ao Cabo são uns 100kms quase sempre a ver o mar,praias de areia bonita e ondulação interessante.
O sol estava quase a por-se e tendo em conta que eu não fazia ideia onde ia dormir fiquei cada vez mais ansioso para chegar, a minha pilha fisica estava a esgotar-se tambem

Chegar ao destino poderia ter sido uma euforia,poderia ter sido uma alegria,uma chuva de margaritas e descanso a ver o mar

Mas não foi

A pior hora de toda a minha viagem começou no momento que entrei na area urbana de Cabo San Lucas, parecia Tijuana mas com praia,que nem vi pois a barreira de barracas primeiro e arranha ceus depois tapavam qualquer vista maritima, sinalização era inexistente e o transito e confusão nem me deixavam perceber para onde é que eu queria ir, e naquele momento o único sitio para onde queria ir era mesmo para um hotel,pousada,hostel o que quer que fosse onde pudesse pousar o corpo e largar o volante.

A raiva começou a apoderar-se de mim e as lombas constantes onde raspava com o carro quase que me fizeram chorar
Que lodo é este?

Vi uma especie de telepizza,parei o carro e refugiei-me no seu interior,tentei acalmar a raiva,a desorientação e o cansaço pedindo uma pizza,abri o lonely planet,tal biblia, em busca de uma solução,não demorei mais de 10 minutos a vê-la no mapa
: Amigo quiero una caja para llevar la pizza e como é que saio desta terra maldita em direcção a Todos os Santos?

Não quis saber e já de noite cerrada voltei à estrada que uma hora antes me tinha levado ali, se por um lado estava completamente desiludido,por outro o espirito de missão estava a 100%, porque aquele momento provou que esta viagem era muito mais do que eu curtir na praia á sombra de um coqueiro,esta viagem era a viagem em si,o destino era só um pretexto

Veio provar tambem que realmente ''the masses are asses'' a Baja nunca será o Cabo,a Baja,pelo menos a minha,é o open space da estrada aberta, a humanidade dos locais, a resistência do espirito humano,os controles militares com a tropa mais simpática que já vi, as milhares de ondas que nunca irão ser surfadas,porque ali há mais ondas do que alguma vez poderá haver surfistas, o deserto e o calor, os cactos do faroeste e o Beep Beep e o Coyote que eu juro que vi

A Baja para mim foi tambem,todos vocês em quem eu pensei enquanto passei as horas mais solitárias da minha vida atravessando o nada,afastando o medo de uma avaria ou um despiste empoeirado.

Quando me deitei finalmente nessa noite,tinha feito 1000kms de rajada,doia-me o corpo e de tão cansado até alucinei um pouco antes de finalmente entrar em sono pesado

Quando um sacana de um galo me acordou por volta das 4, só pensei, a corrida...vai a meio

Pelo menos tenho pizza para o caminho :)

3 comentários:

goncalojfsilva disse...

Parece que valeu mais pela experiência do que pelas ondas/ beleza do local.
Deixaste-me com vontade de fazer algo assim, mas não sozinho. Uma viagem dessas acompanhado certamente dava para curtir mais. Pelo menos não se conduz tanto e duas cabeças a inventar parvoíces é sempre melhor que uma. Ah, e duas cabeças sempre se podem lembrar de levar um canivete a sério! Abraço

lara disse...

muito bom!É bom ver-te.e ler-te.beijinhos

Inês disse...

Dani! E que corrida! Pena não teres aquele telefone à mão, para mudar a "música" nos momentos mais difíceis da viagem. Mas a verdade é que depois de uma má música, uma música ao nosso gosto soa muito melhor... e nem sempre a música que fecha a noite é a que gostaríamos de ouvir... ;)
Viagens destas, viagens "a sério", precisam-se...